sábado, maio 28, 2005

A Guarda Inglesa

Apesar do nome sugerir uma qualquer carga de cavalaria de tropas Inglesas, esta Guarda Inglesa não é mais que o nome de um bairro na margem esquerda do Mondego em Coimbra, junto ao Estádio Universitário; ao Portugal dos Pequeninos; aos Conventos de Sta. Clara-a-Velha e Sta. Clara-a-Nova, e à Quinta das Lágrimas onde, reza a lenda, Inês de Castro foi assassinada.
Foi então a Guarda Inglesa o meu refúgio de férias durante longos e bons períodos de tempo, que na altura se chamavam as férias grandes.
Férias eram férias, e felizmente tive a sorte de ter um irmão a viver em Coimbra com o qual ia ter, assim que acabava as aulas.
Foi um período que durou dos 9 aos 13 anos.
Na altura ia-se de Lisboa para Coimbra de comboio; apanhado em Sta. Apolónia e com paragem definitiva na estação de Coimbra. Era uma viagem que durava para lá das 5 horas, uma vez que, por ser mais barato, se apanhava o "comboio correio", ou seja, aquele que parava em todas as estações e apeedeiros. A demora da viagem era compensada pela expectativa de umas férias bem passadas e com perspectiva de muitas surpresas pelo meio. Surpresas em relação aos amigos dos anos anteriores; dos novos amigos que sempre se faziam todos os anos; das jogatanas de bola dentro do Estádio Universitário; das assistências aos treinos da Académica; da captura de rãs nos charcos do Mondego; dos passeios de barco a remos nas línguas de água que sobreviviam à seca do rio.

A casa onde passava as férias era de madeira e tinha uma traça muito original. Ficava situada numa encosta que subia da margem do Mondego para o Convento de Sta. Clara-a-Nova onde está sepultado o corpo da Rainha Sta. Isabel, a mulher do D. Dinis, que fez o milagre das rosas. Dizem que o corpo dela está intacto e que tal facto prova a sua santidade. O que é um facto é que a Rainha Santa (como normalmente é chamada) é venerada pelas gentes de Coimbra de uma maneira muito especial,
Voltando à casa, recordo-me da entrada principal que era feita através de uma pequena ponte também de madeira, sustentada por vigas que assentavam no chão, e que se dirigia à porta da frente (normalmente só se entrava por esta pequena "ponte" aos Domingos e dias festivos). No dia a dia entrava-se na casa por um pequeno caminho de terra que ladeava o lado direito, e que desembocava num tanque de pedra. Essa entrada dava acesso directamente à cozinha. No interior existiam ainda 3 quartos e uma sala de jantar. Aquela casa (que era dos sogros do meu irmão), era o meu refúgio dos dias cheios de correrias e brincadeiras, e também daquelas alturas em que cometíamos pequenas travessuras e era preciso correr depressa para casa para não sermos apanhados por quem tinha sido prejudicado com as brincadeiras.
O dia começava cedo, por volta das 7h30, com o levantar ao som de um programa de rádio rural onde passavam todo o tipo de músicas folclóricas, mais as notícias do dia e as informações do tempo; das sementeiras e dos trabalhos de campo de cada altura do ano. O pequeno almoço era uma ou duas canecas de leite com café de cevada e pão com manteiga ou doce. Que sabor tinha aquele pequeno almoço. Ainda hoje o recordo com uma saudade incrível, quando por vezes os sabores do pão, do leite e do café se aproximam àqueles. Depois, o dia começava devagar com as primeiras deambulações pelas imediações da casa a observar as árvores, os pássaros e, coisas de putos, a preparar as fisgas e as ratoeiras de pássaros para as próximas caçadas. As fisgas eram feitas de ramos de árvores em forma de Y, em cujas duas pontas superiores se abriam uns sulcos com o canivete, onde iam ser colocadas e presas as pontas da tira de borracha de câmara de ar de bicicleta. Aprendi a fazer as fisgas com o Sr. Mário (sogro do meu irmão), assim como a maneira de apontar e "disparar". As ratoeiras para os pássaros eram de arame forte e eram compostas por duas meias luas com um espigão comprido. Para se armar a ratoeira, abriam-se as meias luas, que se transformavam numa "lua cheia". O espigão, que partia do centro para uma das faces da circunferência permitia, por um pequeno mecanismo de fixação, que a ratoeira ficasse totalmente aberta. Na ponta do espigão era colocada uma formiga de asa ou uma larva do milho. Tanto uma como outra atraiam os pássaros que, ao tentarem bicar, desmontavam a fixação da ratoeira e.....ficavam presos.... ;( Eu sei que era uma crueldade, mas a infância e adolescência têm destas coisas. Ao fim e ao cabo era a atracção por experiências que normalmente ocorrem naquelas idades. Hoje em dia confesso que era incapaz de o fazer......mas naquela altura parecía-nos normal e fazia parte dos códigos pelos quais os catraios se regiam.
Depois de uma manhã a tentar apanhar pássaros e umas visitas à casa do Sr. Zé para ver a ordenha das vacas, vinha o almoço. A fome era sempre mais que muita e ali comía-se de tudo e não se refilava. Sempre me ficou na memória um célebre bacalhau guisado que me custava bastante comer. É um prato típico daquela região mas a mim não me convencia. O bacalhau normalmente era muito salgado e não combinava nada com o facto de ser guisado. Mas lá tinha que comer, porque senão bem podia passar fome até à hora do lanche. Depois do almoço e de uma pequena sesta acordado, lá ia ter com os amigos e aventurarmo-nos um pouco mais longe. Geralmente íamos até à margem do Mondego. Na altura parecía-nos longe, mas a distância era curta: acho que das nossas casas até lá não era mais que um quilometro. O rio era o fascínio. Podía-se andar lá dentro porque o leito secava quase por completo no verão (apenas ficavam as tais línguas de água por onde o rio ia escorrendo até à foz, na Figueira). O acesso ao rio era feito através de cordas presas no paredão, ou uma escada de madeira já meio desengonçada, e que a mim particularmente não me inspirava grande confiança. Descer por descer antes fazê-lo pelas cordas, que sempre parecia que ofereciam menos perigo. Ainda era uma descida um pouco arriscada porque a altura do paredão era razóavel (uns bons 10 metros, acho), e um trambolhão dali abaixo seria complicado. Por isso lá fazíamos a descida com muito cuidado e só um de cada vez. Felizmente nunca houve nenhuma situação complicada, apenas uns sustos a meio das descidas e das subidas. No leito do rio a liberdade era total. Tentávamos apanhar rãs; peixes; cobras de água e outros animais que por ali aparecessem, que depois levávamos. Rãs e peixes pequenos apanhávamos com facilidade, mas cobras de água apenas as víamos às vezes passar, mas acabávamos por não atrevermos a apanhar. O sogro do meu irmão tinha um pequeno barco a remos atracado, que nós utilizávamos para imaginar viagens pelo rio a fora. Algumas vezes andei nele nas pequenas pescarias que o Sr. Mário fazia, e confesso que tinha algum medo quando o balanço era acentuado e os fundões do rio eram de meter respeito. Os rios têm a particularidade de serem muito perigosos nos locais mais fundos porque parece que não, mas há correntes em profundidade que arrastam qualquer um para locais onde se pode ficar preso com facilidade a troncos e vegetação. Os banhos normalmente eram tomados com cuidado, principalmente quando estávamos sózinhos, para não haver surpresas desagradáveis. Felizmente nunca nenhum de nós teve qualquer stiuação complicada no que tocava a dar um mergulho ou outro. As situações mais "complicadas" arranjávamos nós quando, por exemplo, nos atrevíamos a saltar as redes do estádio universitário para jogarmos à bola ou andarmos de patins (houve um ano em que alguém apareceu com um par de patins e foi um fartote de bate cus até alguém se conseguir equilibrar naquilo). Quando o guarda nos via lá começavam as correrias em todas as direcções e o saltar da rede para o lado de fora. Depois escondíamo-nos onde pudíamos e deixávamos passar a fúria do guarda, não fosse ele vir cá para fora e ainda tentar dar alguma estalada nalgum de nós. Vontade tinha ele de certeza, mas pernas para nos apanhar é que era pior! E o facto é que nunca fomos apanhados pelo guarda e fizemos grandes jogatanas dentro do recinto do estádio. ;) As únicas vezes que não nos chateavam por estarmos lá dentro era quando a Académica treinava. Eu explico: Coimbra tem um estádio municipal no qual duas equipas têm direito de utilização; A Académica de Coimbra e o União de Coimbra. Nessa altura o União de Coimbra não tinha expressão e era a Académica que dava alegrias futebolísticas a Coimbra. Como o estádio municipal era utilizado apenas para os jogos e a Académica pertencia, e pertence, à orde dos estudantes universitários, treinava no estádio universitário. E era lá que nos deliciávamos com os jogadores daquela altura. Eu, especialmente, tinha uma queda muito grande pela posição de guarda redes. Ficava embasbacado a ver os treinos dos guarda redes: os voos para as bolas; a rapidez de reacção, a elasticidade nos movimentos. Depois tentava imitar nas jogatanas, mas era mentira, o jeito para guarda redes era só em sonhos, porque ne realidade....chapéu. Ainda hoje a Académica, depois do Benfica, é a minha equipa preferida. Destes tempos guardam-se saudades e recordações que perduram uma vida inteira. Há uns anos passei na Guarda Inglesa e fui aos locais onde passava as férias. A casa já não existe (os sogros do meu irmão mudaram-se para outro local de Coimbra), assim como os outros locais estão mudados. Fiquei triste, mas ao mesmo tempo grato por ter podido passar alguns dos melhores momentos de infância e adolescência num local maravilhoso que me marcou imenso, e que me fez, passados quase 40 anos, recordar pequenos detalhes que pensava já apagados da memória, mas que afinal ainda estão e irão continuar por cá. Coimbra é uma lição......confirma-se o tema da música tão conhecida.








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